25 de novembro de 2004

A Trança de Inês


"(...) não senti nada fui eu que os matei no coração no pensamento e na memória, porque
tenho a memória o pensamento e o coração ocupados com outras coisas
tente lembrar-se, não me lixem os cornos, queríamos perceber a sua infância,
estou cansado, alguém abusou, vá para o caralho, doutor, com o seu Freud desenterrado,
o seu plural majestático e a sua psiquiatria de compêndido, tenho a certeza de que você
é que levou no cú aos seis anos, pra cima de mim não
o senhor Santa Clara não precisa de me ofender, acalme-o, senhor enfermeiro, eu
cala-te, cabrão, se não queres ir para a cela à prova de som metido numa camisa de forças,
o senhor doutor só te quer ajudar minha besta
tenho frio, quero o colete-de-forças, este doutorzinho saido dos cueiros não
percebe nada, não sabe quem eu sou
pois, já sabemos que és o D. Pedro, maluco de merda, responde ao senhor doutor,
responde, responde, responde, responde, responde
mas eu não quero responder, não me quero tratar, só quero os teus olhos atlânticos,
verdes, transparentes, senhores de todos os segredos, de todos os feitiços, de todas as
paixões, tira-me daqui, leva-me, embala-me, adormece-me, deixa-me pousar a cabeça no
teu colo de garça, nas tuas coxas perfumadas, começo a gritar Inês, Inês, Inês, Inês, Inês,
espetam-me uma injecção ao acaso no corpo que se debate e suavemente surges do nevoeiro,
com a tua trança luminosa, os teus seios de nácar, as tuas ancas de deusa e ao som de cantos
gregorianos que enfeitam a penumbra, deixas que me apoie na seda dos teus ombros para
atravessar, mísero, estropiado e chorando, as ogivas da minha solidão (...)"
A Trança de Inês