24 de agosto de 2017

contei-te

fizemos um relógio.
um relógio que contava a partir do nada.
um instrumento perfeitamente armado, mas imperfeito.
não contava os segundos, nem os minutos ou as horas.
calculava os dias, as semanas e os meses.
uma enumeração confusa e pouco matemática,
uma mecânica irreversível e incontornável.
o meu relógio balbuciou, hesitou e doeu.
era o nosso relógio que parou.
o meu relógio perdeu-se no seu próprio tempo.
era um nosso relógio que resfriou.
parou no três.
começou do nada, mas parou na raiz quadrada.
de mãos apertadas, e sós, tentamos contar,
desnorteados, até ao quadrado do seu tempo,
sabendo que seremos esmagados pela imperfeição,
pela incapacidade de saborear o quanto estava cronometrado.
parou num três, mas devia contar um nove...
este relógio está estragado e podre e vamos deitá-lo fora.
não sabemos se seria um relógio leve ou pesado ou lindo ou feio,
mas sabemos que o guardaríamos junto ao peito até os nossos pararem.

18 de agosto de 2017

ruído

vivo num ruído que não se ouve
um ruído que não se fala, não se vê, não se sente
um ruído que só eu ouço, mas que não se ouve
um ruído que sou eu e ninguém mais quem gera.
dói-me a cabeça, dói-me os ouvidos
uma dor do som que este ruído me dá
uma dor que não dói como as dores
uma dor que só dói a quem o ouve
o som desse ruído que só eu sinto
esse ruído que só eu ouço e que ninguém mais ouve
esse ruído que só mais dói a quem me vê ouvir
procuro incessantemente parar este ruído
mas é um ruído tão forte que não se sabe
e sem o saber, não lhe posso pôr mão.

b.



13 de novembro de 2010

de tinta seca

deixei-a descoberta e agora a minha tinta secou.
por mais que agarre esferográficas e pedaços de papel violado que preencha, tudo permanece inalterado.
a tinta não se faz ver e o papel vira-se virgem.
escrevo mas nada fica registado, não há mais tinta, de facto.
pareço mudo. o que possa falar é aquilo que não conseguirei documentar
e o que não é escrito não é dito, jamais. tudo acaba por desvanecer, como tinta devorada pela chuva de janeiro.
tenho tanto para dizer e tanto onde o escrever e não consigo que a minha caneta se me faça encarnar.
estes pedaços de mim que querem passar a ser palavras escritas, frases, prosa, sequências,
nunca morrerão num baú de madeira e trancas de ferro e cheiro a moedas de tostão.
poderia procurar outra forma de o fazer, outra caneta, outra tinta.
mas se o encontrar e as letras sairem desconfiguradas ou avessas ou difamadas ou até desconceituadas, será, da mesma forma, como se nascessem mudas.
não se pode construir história sem tinta. não se faz história lançando palavras ao vento.
preciso da minha tinta. preciso de voltar a ser caneta.

26 de janeiro de 2010

poupem-te

Cuspo-te pensamentos impacientes pois já não sou capaz de gritar.
Deixo-te coberta de saliva, de salpicos ensanguentados.
Bolço-te porque a garganta não solta palavras, apenas sonância.
Sons abafados e tão ásperos quanto a minha capacidade.
Já não há mais voz, mas grito. Grito sem ser capaz de gritar.
Grito-te como se o fim do mundo dependesse das minhas cordas vocais.
Grito mas não me faço ouvir. Faço-me ouvir, mas não te escuto resposta.
Esperneio do que resta da minha saúde. Sovado.
Das forças que evito à evaporação. Tosado.
Vejo-te, dorido, na tua própria dor.
Vejo-te mas não me vês,
Amarrada e vendada e amordaçada na minha frente.
Que te salvem.
Que me transformem num monte de carne negra, moída, odorante, mas que te poupem. Desta minha tortura, tu e eu, nossa, que te salvem.
A ti, eu escolho. A ti, eu salvo.
Que te salvem enquanto apenas posso gritar no silêncio da minha captura.

30 de junho de 2009

de futuro perdido

Magoa-me cada vez que respiro.
É uma dor que não é física, mas é mensurável, garanto.
É a dor de quem não sabe que rumo tomar. De quem o perdeu, de quem o vendeu.
É a dor da angústia de estar perdido, de não saber qual o caminho.
A dor que se sente quando se inspira.
A que não se afasta quando se expira.
Vou vivendo, mas não vivo. Sou um fantoche nas mãos do destino. Agora, apenas, uma serpente de olhos vendados.
Sempre que tento fugir à trajectória desejada sou alvejado.
Nunca atingido em partes vitais, uma espécie de castigo de quem dispara.
Hás-de arrastar-te sangrando, mas não morrerás, pensarão. Sofrerás, ao invés.
Foi, é e será a eterna paga do meu pecado.
O crime de quem se vendeu à entidade errada. Um erro comum de quem deseja conhecer aquilo que não merece.
O futuro a Deus pertence e ninguém o pode destapar.
A Ele pertence e assim se deve manter.
Jamais acreditem em quem vos queira vender a falsa pertença.